quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

"Um (algumas vezes verdadeiro) Conto Natalino" - Sheila Schildt


Post especial de contos escritos pela equipe Dear Book durante o Especial de Natal


"Um (algumas vezes verdadeiro) Conto Natalino"  

Por Sheila Schildt

O seu nome é Emily. Pode ser apenas uma garotinha, mas até mesmo garotinhas como ela já entendem algumas coisas. Por exemplo, ela sabe que o pai é um, mas também é dois às vezes – separado ou ao mesmo tempo. Por que, sabe, ela aprendeu que ele nem sempre esta sozinho. Às vezes, ele esta com “A-Coisa-Ruim”, como a mamãe sempre diz, e quando ele está com “A-Coisa-Ruim”, ah!, aí não tem jeito. Nesses dias o pai não brinca com Emily, não a pega no colo, não a recebe com os braços estendidos e a gira como se fosse um pião, ou a ergue como um avião no céu. Não. Nesses dias, Emily precisa se encolher bem quietinha em algum canto da casa (ou “Aquele-Monte-de-Lixo”, como as colegas da escolinha disseram) em que ela, a mãe e o pai vivem. Por que Emily descobriu que “A-Coisa-Ruim” tem olhos muito grandes, e sempre acaba percebendo quando alguma coisa esta errada. E então fica muito, muito, mas muito braba mesmo com ela e a mamãe. Suas pernas e braços recuperados de duas luxações, suas pequenas costelas fraturadas e os diversos hematomas que o digam. Uma vez “A-Coisa-Ruim” estava tão, mas tãaaao braba, e tinha pego no pai tão, mas tão forte, que o fez chutar sua barriguinha várias vezes, mas ela não chorou. Emily era só uma garotinha – e o que as garotinhas podem entender do complexo mundo adulto? – mas sabia que chorar só iria piorar as coisas, então se calava. Até por que a mamãe acabou dormindo depois que “A-Coisa-Ruim” jogou a cadeira por cima dela, um sono bem pesado, já que por mais que Emily a sacudisse ela não abria os olhos, então não haveria ninguém para quem chorar mesmo.

Sim, Emily só tinha 4 anos, mas já era grande o suficiente para saber de algumas coisas. Mas, ao mesmo tempo, oh, ela era tão pequena! E feliz – ou infelizmente, os pontos de vista são diversos – ainda tinha sonhos, esperanças e acreditava em muitas coisas, como qualquer menininha. Papai Noel por exemplo. Todos os anos, desde que Emily conseguia se lembrar, ele ia até a escolinha (Emily gostava MUITO da escolinha, lá sempre tinha comida e alguns brinquedos, apesar de sempre quebrados) pegava as crianças no colo, e perguntava o que elas queriam ganhar de presente. Todo ano, ela sabia exatamente o que pedir: uma boneca. Podia ser qualquer uma. Emily podia ser grande o suficiente para saber que deveria se esconder quando o pai chegava bêbado em casa, mas ainda não o bastante para distinguir entre marcas e modelos. Para Emily, uma boneca era apenas uma boneca, e mesmo este “apenas” nunca tinha sido mais que um sonho... quando em meio a este, se via segurando “seu bebê” e o embalando nos braços, colocando para dormir e dizendo que a ia proteger. Não, “A-Coisa-Ruim” não pegaria seu bebê.

Apesar de tão pequena, Emily, no entanto, já começava a ficar grande o suficiente para desconfiar de que algo estava errado. Talvez Papai Noel nem tivesse tantos “duentes” mágicos a serviço dele. Aliás, ele é que parecia doente, tão magrinho, coitado! Sempre tão rechonchudo nas fotos, por certo por isso é que nunca podia trazer sua boneca. Emily só tinha 4 anos, mesmo assim já começava a escutar com mais interesse quando as crianças mais velhas da escola diziam que Papai Noel era que nem o Faz-de-conta, tudo de mentirinha. Mas a tia da escola disse que ele existia sim, e que estava tão magrinho quanto Emily por que tinha vindo correndo lá do “PocoNorte” e lá era muito, mas muito longe. No que ela acreditou, mas queria mesmo saber como é que um lugar “pouco” poderia ser assim tão longe ... Emily sentiu alívio, por que ainda havia esperança. A boneca ainda podia ser pedida. Então por que nunca vinha? Seria a falta da chaminé? A mãe dizia que não. Estaria a televisão e seus filmes de finais felizes e garotinhas sorridentes errada? Ela precisava investigar isto melhor.

Apesar de extremamente simples, a mãe de Emily sempre fazia questão de montar a árvore de natal. Mas por mais que os presentes que ali debaixo apareciam sempre fossem úteis – calcinhas, meias e, uma vez, até teve um vestido que ficava grande e tinha um pequeno rasgo por onde Emily brincava de enxergar o umbigo e, mesmo assim, uma das melhores coisas que já ganhara – mas nunca a tão sonhada boneca. Emily poderia ser só uma garotinha, mas sabia muito bem que, lá embaixo, não havia nada com o formato de uma boneca. Ficou triste. Papai perguntou "O-Que-Diabo" havia com ela. Ela viu que “A-Coisa-Ruim” já rondava o pai, mas mesmo com medo de despertar sua ira falou: era uma menina má, pois só assim se explicaria a ausência do que a tanto almejava. Papai (que era papai quando “A-Coisa-Ruim” não estava com ele) prometeu o inconcebível. ELE e não o bom velhinho atenderia à súplica da filha. Que alegria! Ela nem podia imaginar como seria quando finalmente pudesse tê-la em seus braços. Mamãe brigou, disse que o dinheiro era para pagar as contas, pagando com seu frágil rosto a negativa, mas não importava. Papai havia decidido, e quando ele queria algo, ele conseguia.

Em sua aflição mal olhou os presentes que a mão zelosa da mãe havia preparado. Um rudimento de culpa pelo olho começando a arroxear da mãe a acometeu. Mas a culpada não fora ela, que não quis dar ao pai o dinheiro? Ficou à porta, até muito tarde, esperando papai com o tesouro prometido. Até o sol se por, até a noite cobrir a terra, e ficar cada vez mais fria. A mãe a custo tentou convencer Emily a ir dormir. Não podia. Como conciliar o sono? Emily já entendia muitas coisas, mas também era apenas uma garotinha. Como entender a aflição da mãe, a torcer nervosamente as mãos? Que a expectativa sua era também a dela com a diferença de que, enquanto uma embalava doces sonhos a outra, mais madura, já conhecia bem demais a dura realidade que na esquina se avizinhava.?

Quando, por fim, papai chegou, não vinha sozinho. Emily era só uma garotinha, mas crescida o suficiente para saber que, quando papai andava daquele jeito, era por que ali estava o pai e “A-Coisa-Ruim”; e mesmo assim era (de novo) apenas uma garotinha que, diante de tamanha frustração, não consegue conter o pranto ao ver as mãos vazias, prontas para bater. Não, não era uma boa hora para chorar. A mão do pai veio pesada, mas não foi maior que a dor que ia sentir indefinidamente, após as marcas do corpo desaparecerem. Por que há feridas que sangram indefinidamente, cortes que não cicatrizam. Encolhida, chorando sua dor, Emily é apenas uma garotinha de 4 anos, mas agora crescida o suficiente para saber mais uma coisa nessa sua tão curta e já tão sofrida vida: Papai Noel realmente não existe.


Dedicado à todas as Emilys, anônimas, que infelizmente ainda existem – apesar de nossa aparente recusa em ver – em nossa sociedade atual.

5 comentários

  1. Embora o conto seja triste e tenso, vc escreve MUITOOO bem! Descreveu bem as expectativas da garotinha.
    Fiquei com tanta dó, mas o pior é que realmente existem muitas como ela sofrendo por ai... =/

    ResponderExcluir
  2. Me emocionei com o conto... Triste e bem real..

    ResponderExcluir
  3. Tocante!
    Não é o tipo de historinha de natal que todos gostariam de ler, mas achei muito pertinente, pois acontece em nossa sociedade e precisamos discutir o assunto para poder combate-lo.
    Você escreve muito bem, deveria escrever mais por aqui!

    ResponderExcluir
  4. Sinistro, real e como disse a garota acima "tocante". Curti!

    ResponderExcluir
  5. Gosto da parte "feliz" do Natal, mas você nos lembra nesse conto, das pessoas que não tem aquele feliz natal digno de novela, que sofrem, que para eles tudo isso não existe.
    É uma pena e o que podemos fazer nesses casos é denunciar esses animais que se dizem pais.

    ResponderExcluir

Sua opinião é muito importante para nós! Pode parecer clichê, mas não é. Queremos muito saber o que achou do post, por isso deixe um comentário!

Além de nos dar um feedback sobre o conteúdo, contribui para melhorarmos sempre! ;D

Quer entrar em contato conosco? Nosso email é dear.book@hotmail.com

 
Ana Liberato