segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

Resenha: "Velhice transviada: memórias e reflexões" (João W. Nery)

Por Thaís Inocêncio: Quando nascemos, nos é atribuído um dos dois gêneros: feminino ou masculino. No entanto, o modo como nos identificamos pode ou não concordar com essa atribuição. Hoje em dia, as pessoas que se identificam com o gênero atribuído no nascimento são chamadas de cisgêneros; já as que assumem uma identidade oposta ao gênero de nascimento são chamadas de transgêneros. Vale ressaltar que essa identificação em nada tem a ver com nossos aspectos físicos, por isso uma pessoa trans pode ou não passar por cirurgia de redesignação sexual, por exemplo. 

Dito isso, surge uma pergunta: você já parou para pensar que a velhice é um privilégio das pessoas cisgêneras? Já percebeu que, por conta do mundo preconceituoso e intolerante em que vivemos, as pessoas trans não tem direito à longevidade? Abrir os nossos olhos para essa realidade é o objetivo do livro Velhice transviada, de João W. Nery. 
"Dedico este livro às pessoas trans, sem voz, às mais invisíveis para a sociedade [...], sobretudo, às que não tem direito à insolência da longevidade, por morrerem assassinadas, ainda prematuramente."
O livro é dividido em duas partes. Na primeira, o autor fala brevemente sobre a sua vida e experiência como o que ele chama de "transvelho", já que ele escreveu a obra aos 68 anos de idade (informações mais detalhadas sobre a sua trajetória podem ser encontradas na autobiografia Viagem solitária – memórias de um transexual 30 anos depois). João Nery é considerado o primeiro transgênero masculino a passar por cirurgia de redesignação sexual, aos 27 anos, em plena ditadura militar, quando esse procedimento ainda era proibido. Para isso, ele precisou passar por uma "morte social" e iniciar uma nova vida, com outro nome e documentos, perdendo seus registros anteriores, como seu diploma de psicólogo. 

Ao ler sobre essa experiência, percebemos como o machismo existe em todos os espaços, inclusive entre a população trans. Se uma pessoa nasce "mulher", mas se identifica como homem, a partir do momento em que ela tira a mama e os hormônios lhe garantem barba e voz grossa, por exemplo, ela consegue se camuflar na sociedade, ainda que também enfrente muita dificuldade no caminho. Porém, uma travesti ou mulher trans não consegue essa invisibilidade e carrega consigo grandes marcas físicas e psicológicas da violência e do sofrimento. Ainda assim, é graças às pessoas que se expõem e se rebelam que houve algum avanço na conquista de direitos para essa comunidade. 
"A gente escondida não muda nem transforma nada, não abre caminho para ninguém".
Para comprovar a ideia de que os transvelhos são uma raridade, o autor traz dados alarmantes. Um deles é de que a média de vida de uma travesti é de 35 anos de idade. Além disso, em números absolutos, o Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo – e mata três vezes mais que o segundo colocado, que é o México. Quando não são assassinadas, o preconceito, o afastamento da família e a falta de espaços levam as pessoas trans a tirarem a própria vida. 
"Quando alguém transiciona, a família também passa a ser cobrada, questionada pelos parentes, vizinhos. Muitas não suportam a pressão e acabam expulsando seus filhos e filhas de casa. [...] A rua é o maior sofrimento para qualquer pessoa."
Na segunda parte do livro, o autor transcreve entrevistas com os poucos transvelhos que conhece. São relatos crus e impressionantes da jornada que enfrentaram para chegar à velhice. Nesse ponto, João Nery revela uma realidade que ele diz ser comum e pouco falada (e que me chocou bastante): a destransição na terceira idade. Isso significa que algumas pessoas assumidas trans por anos, quando se tornam idosas, retomam as características físicas do gênero de nascimento para terem direito à tratamentos de saúde, conseguirem empregos formais e até serem novamente aceitas pela família, tendo quem cuide delas nessa fase mais delicada da vida.  
"Pense comigo: veja nossa sociedade, os preconceitos, e imagine um corpo envelhecido de uma travesti, cheio de silicone caído, deformado, vendendo um picolé na rua. [...] Seria uma chacota, seria humilhada. Me desmontar foi uma forma de defesa, de me proteger."
Esse livro é curto (menos de 200 páginas) e tem uma linguagem simples, mas apresenta realidades cruéis, questões necessárias e nos faz refletir muito. É um soco no estômago, principalmente, de quem não ocupa o lugar das pessoas trans e, por isso, não costuma pensar sobre a dificuldade que é viver de acordo com a sua verdade só porque ela não é socialmente aceita. Nessa obra, João Nery nos mostra, com muita sensibilidade, que a diversidade existe e nosso único dever é respeitá-la. 
"Todos nós nascemos gente, o resto são rótulos."

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Ana Liberato