segunda-feira, 15 de julho de 2019

Resenha: "De Espaços Abandonados" (Luisa Geisler)


Por Kleris: Uau. Perplecta estou. Surtada fiquei. E palavras encontrarei, porque preciso falar desse livro.

Conhecido por desafiar os limites da ficção, De Espaços Abandonados nos coloca frente a mais possibilidades de feitura ficcional até então inimagináveis. Luisa tornou possível a formação de um romance em um... romance. E romance esse de formação.

Inception sim. Mas vamos por partes. 
Tudo o que está na terceira pessoa aconteceu. E se sabe que aconteceu porque o(a) narrador(a) é onisciente e confiável. O(a) narrador(a) é sempre confiável. O(a) narrador(a) não mentiria sobre aonde ele vai durante a noite. O(a) narrador(a) pode ver. E tudo o que está na terceira pessoa aconteceu com certeza. Aconteceu porque eu sei que aconteceu.

O enredo retrata a busca de Caio por Maria Alice, sua irmã, que viajou à procura da mãe, Lídia, que fugiu de casa e pelo tempo de desaparecimento, foi dada como morta. Lídia é bipolar, então constantemente Maria Alice e Caio, desde pequenos, assumiram responsabilidades quanto a cuidar da mãe. Ainda nesse papel, Maria Alice jura de pé junto que descobriu o paradeiro de Lídia, em Dublin, e parte nessa viagem.

É pela jornada de Maria Alice que entendemos mais sobre essas buscas, as relações familiares, o que a move (ou não move), seus planos e seu senso quanto ao panorama. Através dela somos levados também a outras pessoas e histórias, já na Irlanda, onde conhece estudantes brasileiros, como Maicou, Bruna e Caetano, com quem divide um apartamento. Todos, pelo jeito, estão tentando dar um jeito na vida. 
Costumava ser a criança que era “uma promessa” e que “tinha futuro” e que “ia dar certo”, mas aí. Sei lá.

O pulo do gato do livro é como o enredo é apresentado ao leitor: são fragmentos que funcionam como pistas para ligarmos os pontos, o que torna a leitura um tanto investigativa e ao mesmo tempo desafiadora, pois esses mesmos fragmentos são pedaços de uma narrativa dentro do próprio livro com múltiplas vozes narrativas. E esses fragmentos são registros e vivências que precisam de nossa costura (como um manuscrito inacabado), algo que não é fácil, mesmo com todas as sugestões no ar e mesmo com o manual que existe dentro do livro. 
“Imigrantes. Todos nós o somos, hoje. Quando a viagem não nos move, é o entorno que nos foge, o que dá no mesmo. Ficamos então parados, com tudo o mais indo, imigrantes a tentar entrar, todos os dias, em nós mesmos.”
Elvira Vigna, O que deu para fazer em matéria de história de amor.

Ler De Espaços Abandonados é se sentir constantemente perdido, bugado (modo HARD), e ainda assim instigado, perguntando-se sobre o que está acontecendo, se o que nos é apresentado vale para todo o contexto, se a narrativa está nos enganando, se a gente está no paralelo certo, qual é o sentido do rolê, e, claro, uma busca alucinada sobre o destino dos personagens. Como já disse a própria autora em entrevistas, é um livro esquisito e de leitura esquisita.

Isso quer dizer que o livro demanda um pouco de seu leitor. Por quebrar e reconstruir o script de um romance, pede-se um leitor mais experiente, mais solto e disposto a sair da zona de conforto. E que saiba inglês também, porque há conversações e referências quando vivemos com os imigrantes. Quem tem alguma experiência com escrita criativa pode ter umas vantagens – vai se situar melhor, entender as razões de algumas coisas e, por que não, se identificar nas mil e umas anotações.
dfghjkl.rtf
O dia em que Brasileiro desembarcou na Irlanda era verde com cheiro de cerveja. As pessoas se abraçavam. As pessoas sorriam muito. Bebia-se muito nas ruas. Cantavam. O rio que cruzava a cidade estava pintado de verde. As pessoas bebiam, lotavam os pubs e celebravam nas ruas. Dublin era o melhor lugar do mundo. 

Sempre que menciono exploração urbana — uma expressão estranha, que me desagrada, que requer explicação —, muita gente fala que gostaria de fazer. Mas nunca chegam a realizar o desejo. Como escrever um livro, todo mundo acha que deveria fazer. Todo mundo acha que tem que fazer. Ou isso ou todo mundo está escondendo lugares bons (na literatura e nos lugares abandonados).



Tal qual um jogo narrativo, nossa percepção é posta à prova. Mesmo com toda a visão privilegiada que Luisa nos permite, esse é um quebra-cabeça em que não conhecemos as “peças da ponta”, pelo menos não até terminar o livro e ficar só BERROS pela ficha que cai. 
O landford não vai aprovar essa merda. Vai sobrar pra mim, pra variar.
Fiz carinho em Taco Cat.
É um gatinho, não um rinoceronte festivo. Como ele vai saber?
Eu me sentiria mal mentindo para ele.
Eu dei uma gargalhada forçada:
Mas moram três pessoas a mais nesse apartamento do que o contrato prevê. E o gato é o que te incomoda?

Dividido em três partes, temos diversos paralelos enquanto a história está sendo construída na nossa frente. Para além de Maria Alice, Maicou e Bruna são dois personagens que facilmente roubam a atenção e Caio é aquele à espreita, com um lugar cativo na narração. Mas o mais curioso é que no meio de tanta voz, Luísa joga umas pistas e depois desfaz, o que quebra umas teorias e nos deixa desconfiados pensando demais.

Já a ambientação e o contexto em que somos inseridos, esses são pontos sensíveis para a compreensão do título. Fala-se muito sobre se perder, se abandonar e as relações que construímos ou desconstruímos no meio do caminho, estando parados ou não. Luisa é maravilhosa em nos mostrar isso.

Obviamente, o tom do texto assume uma melancolia constante para demonstrar essa falta de norte ou foco. A questão da imigração cai como uma luva, mas é interessante que Luisa não se prende a amarras comuns (e quanto a qualquer coisa). Quer dizer, não há qualquer exaltação ou romantização, seja sobre viver fora do país, seja sobre relacionamentos ou aspectos mais pessoais de seus personagens. Essa banalização e desprendimento também revelam um pouco de depreciação, o que não sei dizer se faz parte do estilo da autora ou se é um caso em particular, vez que essa é a primeira obra dela com que tenho contato (e com certeza lerei outros). 
Lembrem que vocês são brasileiros, tá?, eu disse.
Tipo os nossos cuidam dos nossos?, o bosta disse.
Não, eu disse. Vocês são brasileiros. E tem muito brasileiro por aqui. Vocês também são. Só isso. 
Sempre discutiam a respeito do termostato na parede. Matildo queria economizar eletricidade. Caetano achava que não tinha que tremer de noite. Que comprasse um cobertor. Caetano jogou dinheiro na cara de Matildo. Matildo disse que ia usar para pagar a parte do aluguel de Caetano, que sempre estava atrasado. Um dia a capinha do termostato caiu. Ele não estava conectado a nada. 
— Então só sobra uma saída pra você — ela disse. — Cê tá fugindo de algo.
— Se fosse pra fugir, é uma fuga meio cara, não é? Meio playboy magnata cheio da grana que vai desopilar na Europa.
— Vontade de fugir não é um luxo. É uma vontade. Só.

Por vezes o ritmo do livro diminui, e os fragmentos parecem incongruentes, aleatórios e até mornos, mas terminamos a leitura sabendo que estava tudo no lugar. Luisa nos entrega uma obra original, madura, pretensiosa, excepcional e que abre novos precedentes para a ficção e seus experimentalismos. Uma certeza que se tem é que, entendendo ou não entendendo o rumo ficcional, seremos geislerados. Eu estava no caminho certo quando ainda decifrava sua capa. 
Branco no azul no azul no branco com azul sob o azul.
Mas são só cadernos em branco. Sempre é só papel. 
Passei tanto tempo na minha cabeça que tinha desenvolvido um novo nicho/camada de humor que ninguém no mundo real, em que as coisas aconteciam, entendia.

E talvez eu precise reler. Porque perguntas e respostas e novas perguntas continuam ecoando aqui dentro.
Ou isso. 
Ou.

*Não preciso dormir. Preciso de respostas.* 
— Não é estranho como a gente fica constante e continuamente numa conversa mental com a gente mesmo? — Bruna disse para ninguém em específico. E tanto me sentia como ninguém em específico que me apaixonei por ela. 
Mas a verdade é que todos os livros são sobre criação literária, não é mesmo?

Fica ainda a dica de ouvir um episódio do Podcast 30Min dedicado ao livro e uma entrevista da autora no Programa Folhetim, para se embrenhar mais nessa viagem toda que é De Espaços Abandonados.

Recomendadíssimo se esse tipo de proposta também te fascina.

Até a próxima!

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Ana Liberato