sexta-feira, 24 de abril de 2015

Resenha: "A Balada de Adam Henry" (Ian McEwan)

*Por Mary*: Bem, quando abri o livro e me inteirei da sinopse, logo pensei "o livro é curtinho, mas vai me dar um trabalho dos diabos" e não me enganei.

O tema é bastante polêmico, o que requer muito cuidado, uma vez que tal discussão envolve diversos pontos de vista e vieses (esse tema comumente é levantado na faculdade de Direito). Quem cursa Direito aí sabe que não é fácil (e eu diria até impossível) chegar a um consenso quando se envolve religião, vida e família em um mesmo conflito.

Sou advogada e tenho uma verdadeira inclinação para o Direito de Família, que, inclusive, foi a área de estudo da minha monografia. Justamente por isso, percebi que esta resenha requeria outro cuidado: não enchê-la de juridicismos para evitar que se torne um texto maçante. Ninguém aqui está interessado em um artigo científico sobre direito.

Portanto, prometo que farei o possível para me ater ao máximo à parte literária da obra.

Não quero ninguém cochilando!

Fiona Maye é uma renomada juíza da Vara de Família do Tribunal Superior britânico, reconhecida no meio profissional por sua imparcialidade e competência; é respeitada por seus colegas e admirada em todo o meio jurídico. O sucesso profissional, todavia, esconde os problemas enfrentados na vida privada. Fiona não consegue se desvincular dos casos que julga, o que prejudica sua vida pessoal. Seu marido, Jack, surge com uma proposta indecente, ao mesmo tempo em que ela precisa decidir a vida de um garoto de 17 anos, Testemunha de Jeová, que se nega a receber uma transfusão de sangue que o salvaria da leucemia. Enquanto vida pessoal e profissional convergem, Fiona precisa repensar sua forma de lidar com as consequências das decisões que toma em relação às vidas de terceiros.

Tive uma professora na faculdade que costumava dizer que, se você passa a levar os casos profissionais para casa, isso vai acabar com a sua vida pessoal, porque você passa a viver aquilo que não deveria interferir na sua vida. Fiona é a prova do conselho da minha professora.

Não obstante ser uma boa profissional, juíza impecável e o mais imparcial possível, Fiona se deixa envolver demais pelos casos que julga. A despeito das sentenças que profere, à noite, remói cuidadosamente cada um de seus casos, têm pesadelos e isso afeta seu casamento com Jack, que está cada vez mais insatisfeito. Outro fato que, acredito eu, influencia bastante no caos que a vida da juíza se transforma é o seu caráter extremamente introspectivo. Se eu pudesse bater um papo com a meritíssima, respeitosamente sugeriria que ela procurasse um psicólogo. Urgentemente. 
“E por fim ela desandou a chorar, de pé junto à lareira, os braços caindo inermes ao longo do corpo, enquanto Jack observava, chocado por ver sua mulher, sempre tão contida, num paroxismo de dor. (...) Fiona não conseguia falar, o choro não iria parar e ela não podia mais permitir que fosse vista naquele estado. Abaixou-se para pegar os sapatos e, só de meia, atravessou correndo a sala e o corredor. Quanto mais se afastava dele, mais alto chorava. Entrou no quarto, bateu a porta e, sem acender a luz, se atirou na cama, enfiando o rosto num travesseiro.”

Conforme o próprio texto menciona, Fiona é sempre muito controlada, muito contida, a ponto de não se abrir nem mesmo para o próprio marido, com quem é casada há longos trinta anos. Talvez a crise no casamento seja apenas uma bola de problemas que ela mesma permitiu transpor-se entre ambos. Em toda sua vida, a juíza seguiu o caminho da retidão, foi uma boa filha, profissional, esposa... mas deixou sempre sua vida pessoal de lado em detrimento da profissão (e eu não vou entrar nesses termos).

Em meio a esta crise pessoal, surge Adam Henry, um rapaz de dezessete anos, cheio de vida e talento artístico, que se nega fundamentadamente a receber uma transfusão de sangue, por conta da religião que segue – Testemunha de Jeová. Nem mesmo Fiona imagina no quanto sua decisão irá interferir na vida do rapaz, surgindo um tipo de paixão platônica* que irá determinar o futuro do garoto.

A trama construída por Ian McEwan, sem dúvida, é indiscutivelmente bem escrita, muito bem fundamentada e com as ideias bastante amarradas. O autor, inclusive, em seus agradecimentos, menciona alguns magistrados amigos seus e casos que o inspiraram para escrever o livro.

Formalmente falando, A Balada de Adam Henry é bem curtinho (apenas cinco capítulos distribuídos em 193 páginas), mas materialmente denso. A leitura não é fácil, o tema é difícil e a narrativa, por vezes, maçante.

Calma, que eu vou explicar. É muita informação, né?

Bem, a leitura não é fácil, porque Ian McEwan adota uma forma de narrativa chamada indireto livre. Isto é, a história inteira quase não possui diálogos. Quando um personagem fala, é o próprio narrador – em terceira pessoa, partindo da perspectiva de Fiona – quem descreve o que foi dito. 
“Era evidente, disse Berner, que não realizar uma transfusão constituía uma forma de tratamento. Nenhum dos profissionais que cuidava de Adam duvidava da inteligência dele, de sua extraordinária capacidade verbal, de sua curiosidade e paixão pela leitura (...).”
“Todos que conheceram Adam, disse Grieve, ficaram impressionados com a precocidade e maturidade dele. (...) Grieve fez uma pausa, como se necessitasse refletir, e depois gesticulou na direção da porta pela qual o médico deixara a sala do tribunal. Era perfeitamente compreensível que o Sr. Carter detestasse a ideia de não aplicar o tratamento. Isso apenas comprovava a devoção profissional que se esperaria de uma figura tão eminente.”

Os dois trechos acima são do julgamento em que Fiona decide o futuro de Adam Henry. Durante a maior parte da argumentação, o autor descreveu as falas dos personagens, em vez de transcrevê-las. Isso pode se tornar um pouco cansativo, dependendo do leitor. Eu, particularmente, achei cansativo.

O tema ser particularmente delicado se autojustifica. Porém, digo que o tema é difícil no sentido de requerer certo conhecimento prévio acerca de algumas predisposições religiosas. Ao passo que o autor conseguiu ser bem claro – e eu diria até didático – sobre os motivos dos seguidores religiosos Testemunhas de Jeová, Ian McEwan conseguiu expor justificadamente as razões às quais fundamentam suas convicções. Confesso que, apesar de saber que os Testemunhas de Jeová não aceitam transfusões de sangue por acreditarem se tratar de uma forma de impureza, não sabia qual a explicação para isso.

A narrativa se torna maçante por conta da forma utilizada pelo autor de construir o texto. Quero dizer, são poucos diálogos, poucas ações, parágrafos muito longos... eu até mesmo incluiria a característica da protagonista de remoer demais os fatos, mas julgo que esta é uma característica própria da personagem principal. Se não fosse isso, provavelmente não haveria nem conflito a se explorar.

Além disso, talvez pela trama fechada, não me senti parte da história. Sabe aquela sensação de estar dentro da obra e vivenciar aquilo tudo? Não senti. Contudo, acredito que isso também tenha sido meio elaborado pelo autor. Isto é, a protagonista é tão fechada, tão introspecta, que ela nem mesmo permite a aproximação do leitor. É como se o leitor fosse um dos amigos que Fiona não permite se aproximar o suficiente para conhecê-la, sentir o que ela sente realmente, vivenciar os seus fantasmas e compreender o seu sofrimento. Mesmo que não objetivamente, creio que Ian McEwan intencionou o tempo todo esse afastamento.

Não conheço as outras obras do autor, então não sou capaz de fazer aqui uma comparação. Também não posso dizer que compreendo seu estilo de escrita, porque, como disse, não tenho como comparar. Todavia, Ian McEwan me passou uma boa impressão. Ele tem a escrita bem fundamentada de quem sabe perfeitamente do que está falando, a seriedade de quem aborda temas polêmicos sem ofender diretamente os “atingidos” e, sobretudo, uma capacidade impressionante parar criar uma trama psicológica que envolve uma gama variada de temas que convergem na vida da protagonista de forma incontrolável.

Em A Balada de Adam Henry, você encontrará uma mulher que deixou sua vida pessoal de lado em detrimento da profissão amada, que abdicou da maternidade pelo sucesso profissional e, por diversas vezes, se anulou em função de um objetivo almejado. Quer tema mais atual? Isso tudo, somado a um tipo de crise de meia idade, no casamento de longos anos, o envolvimento indesejado com um rapaz que deveria ser apenas outro caso profissional, a religião desse mesmo rapaz, a preocupação com sua reputação e uma atração inexplicável que mescla a maternidade reprimida e o desejo sexual. 
“Quem sabe quanto tempo temos. Não muitos anos. Ou voltamos a viver outra vez, a realmente viver, ou entregamos os pontos e aceitamos que vai ser uma droga daqui até o fim.”



*Amor Platônico é um tipo de amor fantasioso ou idealizado em que não há contato real entre os amantes. Quero dizer, não há uma concretização na relação física factual. É como um amor impossível, fundamentado na teoria de Platão, que defendia o amor como um sentimento essencialmente puro e desprovido de paixões.





0 comentários

Postar um comentário

Sua opinião é muito importante para nós! Pode parecer clichê, mas não é. Queremos muito saber o que achou do post, por isso deixe um comentário!

Além de nos dar um feedback sobre o conteúdo, contribui para melhorarmos sempre! ;D

Quer entrar em contato conosco? Nosso email é dear.book@hotmail.com

 
Ana Liberato