segunda-feira, 11 de abril de 2016

Resenha: “Amor e Memória” (Ayelet Waldman)

Tradução de: Debora Fleck




*Por Mary*: Olaaaaaaaar, comunidade! Como vão as leituras?




Confesso que inicialmente escolhi este livro por conta da temática envolvendo a expropriação de bens dos judeus, no contexto da Segunda Guerra Mundial. Todavia, fui surpreendida por uma profusão de temas interessantes, tais como: Feminismo e sufrágio universal, a criação do Estado de Israel, o tratamento dado aos refugiados de guerra, a relação interpessoal dos judeus oriundos de diversificadas comunidades e a realidade europeia no pós-guerra. 


Quando a guerra terminou, era como se alguém tivesse sacudido a colcha de retalhos em que a Europa se transformara, fazendo as pessoas caírem de paraquedas nos mais diversos confins do continente. Havia milhares de trabalhadores forçados e escravos recrutados na Polônia e na Rússia, na Dinamarca e na Holanda, vindos de todos os cantos do Terceiro Reich. Reunindo-se a esse fluxo de gente que perambulava entre os destroços deixados pela guerra estavam (...) centenas de milhares de alemães e austríacos compelidos pelas forças armadas de Hitler a desocupar suas cidades em vez de se entregar ao inimigo em expansão (...). Os antigos prisioneiros de campos de concentração constituíam apenas uma pequeníssima parcela de indivíduos amontoados nos campos de refugiados. No meio deles, escondiam-se alguns guardas dos antigos campos (...), que tentavam voltar furtivamente para casa antes de seus crimes virem à tona.
Em Amor e Memória, Natalie Stein é uma advogada recém-separada, prestes a perder o seu amado avô para o câncer. Como forma de dar um propósito à neta para superar o divórcio e luto iminentes e, também, aliviar sua própria consciência, Jack, um ex-Capitão de Infantaria, que serviu durante a Segunda Guerra Mundial, entrega-lhe um medalhão e pede que ela o devolva a seu legítimo dono – ou a seu herdeiro. O problema é apenas um: Jack não tem ideia de quem seja o dono da joia.

Na busca pela realização do último desejo do avô, Natalie acaba conhecendo Amitai Shasho, um negociador de obras de arte roubadas durante o Holocausto. Ele está em busca de um quadro cuja modelo usa justamente o medalhão, pintado por um artista não tão conhecido. Essa parceria acaba os unindo de uma forma ainda mais profunda e as descobertas a respeito do enigmático medalhão em filigrana de ouro ao estilo art nouveau são ainda mais impressionantes.

Uma joia. Três mulheres fortes e independentes. Vidas em momentos distintos da história entrelaçadas por um pingente esmaltado de pavão roubado durante a Segunda Guerra Mundial.
- Eu comecei tudo isso porque o meu avô sentia que tinha prejudicado alguém, e, para honrá-lo, eu precisava honrar esse sentimento. Aceitei a ideia de que poderia consertar a situação se achasse a mulher de quem ele havia tomado o colar, ou alguém que tivesse relação com ela, e devolvesse a peça. Imaginei as coisas voltando a se equilibrar. – Ela se virou para olhar o museu. – Mas é claro que não se tratou de nada disso, né? O meu avô está morto. Ele nunca vai saber o que foi que eu fiz ou deixei de fazer com o colar. Essa obsessão só serviu como repositório para o meu luto por ele. E pelo meu casamento, eu acho.
- Você tinha essa noção desde o princípio?
- Acredito que sim, mas acho que só agora entendi que, durante toda a minha vida, minha experiência com o Holocausto foi exatamente a mesma coisa: um repositório útil para os sentimentos. Em virtude da minha religião, eu estava livre pra adotar essa tragédia colossal e sem precedentes como se fosse minha. Por causa do Holocausto, eu tive permissão ou, melhor, o direito de sentir toda a dor de que a minha vida abençoada e confortável me poupou. Só que essa nunca foi a minha tragédia. Coletivamente, como judia, sim. Mas pessoalmente? Não.
Amitai balançou a cabeça, quase rindo, porque naquele mesmo instante sentia, pela primeira vez, que a tragédia dos judeus da Europa lhe pertencia sim.
Com um texto bem escrito e uma trama igualmente bem amarrada, Ayelet Waldman narra, predominantemente em terceira pessoa, a busca de Natalie e Amitai pelos verdadeiros donos do medalhão, entrelaçando com maestria três histórias aparentemente paralelas unidas por um ponto de interseção de ouro adornado por ametistas e peridotos.

Para além de um livro incrível, a autora também é muito feliz na criação de seus personagens, extremamente reais, cheios de defeitos e virtudes. As figuras femininas, aliás, são fortes e dominantes, absolutamente independentes mesmo em sociedades patriarcais que tolhem as liberdades e escolhas pessoais das mulheres. Três homens relativamente pacatos têm suas vidas viradas de pernas para o ar diante destas personas involuntariamente apaixonantes.
- Em Nova York, você vai ser minha mulher, Ilona, casa comigo. – pediu ele, caindo no chão com atraso, apoiado em um dos joelhos.
- Meu Deus, Jack! Você está bem?
- Estou.
- Mas você caiu.
- Eu não caí. Estou me ajoelhando, Ilona. Por favor, casa comigo.
Algo bastante singular que observei em Amor e Memória é que não há um "endeusamento" dos Aliados. Os vencedores da guerra, sobretudo os soldados americanos – particularmente retratados – são descritos de modo muito realista, não-heróicos e, por vezes, corruptos. Quando o assunto é Segunda Guerra Mundial, estamos acostumados a enxergar somente o lado do bem e o lado do mal – o que é muito fácil, cá entre nós – esquecendo-nos, por exemplo, do descaso com relação aos refugiados no pós-guerra, da apropriação indevida de bens dos judeus, do despreparo de grande parte dos soldados e da situação preocupante que assolou a Europa durante o período.

Fato é que Ayelet recheia seu livro de informações importantes, que contextualiza um conflito proveniente de décadas – talvez até séculos – anteriores e que aprendemos na escola de maneira descontextualizada, resultando em um dos maiores absurdos já praticados pelo homem – e olha que não foram poucos, hein? – fruto de posicionamentos ideológicos equivocados e desumanos.

Senti falta, contudo, de uma razão mais direta que relacionasse a última parte do livro à trama principal. Apesar de relevante, esclarecedora e extremamente rica, a maneira como foi alocada pela escritora ficou parecida como a de um “apêndice” o qual, apesar de sanar dúvidas dos leitores e fechar núcleos, não possui uma ligação contundente com o mote da obra. Penso que, com uma rápida adaptação em alguns diálogos e mudando de lugar algumas cenas, talvez  a trama ficaria ainda melhor amarrada e mais dinâmica.

Portanto, se você é apaixonado por boas histórias, ricas, bem escritas, esclarecedoras e que vão te agregar conhecimento sem deixar de entreter, não deixe de ler Amor e Memória.
- Depois que fomos liberados, a Cruz Vermelha inglesa fez uma inspeção. A gente não tinha nada. As pessoas ainda estavam morrendo a cada minuto. Lembro ter visto uma mulher, com um pedacinho de sabão, se limpando com a água de uma cisterna onde flutuava o corpo de uma criança morta. Mas então veio a Cruz Vermelha e, alguns dias depois, chegaram dez caixotes de batom, ninguém sabe como nem de onde. Não tínhamos comida nem gaze, mas batom a gente tinha. E, caramba, era muito batom! Caixas, caixas e mais caixas. Estávamos tão felizes! Todas nós usávamos batom o tempo todo. As mulheres se agachavam nos cantos para esvaziar os intestinos com disenteria, mas seus lábios... De um vermelho perfeito. Minha amiga morreu segurando seu batom. Era a coisa mais importante que ela possuía.
- No campo, ninguém é mais do que uma cabeça raspada, um trapo de roupa e um número. Mas – completou Ilona, juntando um lábio no outro – , se você põe um batom na boca, acaba virando uma pessoa. Um ser humano.
- Você está linda. – Disse Jack.
- Linda talvez não, mas um pouco mais parecida comigo mesma.

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Ana Liberato