quarta-feira, 3 de agosto de 2016

Resenha: “Ainda Estou Aqui” (Marcelo Rubens Paiva)

*Por Mary*: É, minha gente, em tempos de manifestações políticas com pessoas ostentando cartazes pedindo pela volta da ditadura, sinto vontade de esfregar esse livro na cara de cada uma delas.


A tortura é a ferramenta de um poder instável, autoritário, que precisa de violência limítrofe para se firmar, e uma aliança sádica entre facínoras, estadistas psicopatas, lideranças de regimes que se mantêm pelo terror e seus comandados. Não é ação de um grupo isolado. A tortura é patrocinada pelo Estado. A tortura é um regime, um Estado. Não é o agente fulano, o oficial sicrano, quem perde a mão. É a instituição e sua rede de comando hierárquica que torturam. A nação que patrocina. O poder, emanado pelo povo ou não, suja as mãos.



Porém como este blog não é político, mas sim literário, vamos conversar sobre um livro maravilhoso? Vamoooooos!

Em Ainda Estou Aqui, com uma narrativa descontínua, sem preocupações com a ordem cronológica dos fatos, Marcelo Rubens Paiva descreve muito mais do que a vida de sua mãe ou a prisão e assassinato do seu pai, ele contextualiza um momento histórico importantíssimo na vida política do país. Mais ainda, o autor aborda um recorte histórico que deve ser lembrado, estudado e analisado a fundo, a fim de que um golpe semelhante não volte a se repetir.

Sabe quando você vai ver um filme? De início, há apenas uma tela negra que se abre a uma imagem ampla – a imagem de uma cidade aparece à sua frente, talvez? – que vai se fechando em um ponto fixo, afunilando até encontrar um bairro, um telhado e, finalmente, uma pessoa. Esse, na maioria das vezes, será o nosso protagonista. É dessa maneira que você se sente no primeiro capítulo deste livro do escritor, dramaturgo e jornalista Marcelo Rubens Paiva. A partir de uma reflexão pontual acerca da memória, o leitor é introduzido ao mundo de uma pessoa com alzheimer e, então, à vida de sua mãe, Eunice, portadora da doença. 
A memória é uma mágica não desvendada. Um truque da vida. Uma memória não se acumula sobre outra, mas ao lado. A memória recente não é resgatada antes da milésima. Elas se embaralham. Minha mãe, com Alzheimer, não se lembra do que comeu no café da manhã. Minha mãe, com Alzheimer, vê meu filho de um ano, que é a minha cara, e o reconhece. Não acha que sou eu, mas o chama de filhinho, de meu filhinho.
Que pessoa fascinante! Eunice Paiva foi esposa do deputado Rubens Paiva, morto pela Ditadura. Viúva, com cinco filhos, em busca do paradeiro do marido – não obtendo respostas das autoridades, mesmo após o fim da ditadura militar – se formou em Direito, advogou pelos direitos difusos e coletivos – sobretudo indígenas –, circulou pelas altas rodas sociopolíticas e se tornou um grande nome no meio jurídico brasileiro.

Mesmo com todas as dificuldades, as perdas e o silêncio, Eunice Paiva deu a volta por cima, demonstrou uma força impressionante. Nunca chorou diante das câmeras. Em vez disso, lutou. E o reconhecimento da morte de seu marido – considerado “desaparecido” pelos militares – só chegou em 1995. Isso mesmo, somente vinte e cinco anos depois de sua morte. Apenas posso imaginar a dor destas famílias que perderam seus entes queridos para um governo totalitário e pungente. 
Meu pai, um dos homens mais simpáticos e risonhos que Callado conheceu, morria por decreto, graças à Lei dos Desaparecidos, vinte e cinco anos depois de ter morrido por tortura.
Eu poderia dizer que este livro é uma biografia de Eunice Paiva, mãe do escritor e brilhante advogada vítima da ditadura militar que assolou o Brasil nos anos 60 – e perdurou por aí até boa parte da década de 80. Contudo, julgo que não seria inteiramente honesta se assim o fizesse.

É muito mais que isso, pois, com o fim de contar a história de sua mãe, Marcelo Rubens Paiva entranha em sua própria história, na de seu pai e, sobretudo, no lapso histórico que tanto marcou o destino da família Paiva; traçando uma profunda reflexão sobre memória, força e resiliência. 
A tática do desaparecimento político é a mais cruel de todas, pois a vítima permanece viva no dia a dia. Mata-se a vítima e condena-se toda a família a uma tortura psicológica eterna. Fazemos cara de fortes, dizemos que a vida continua, mas não podemos deixar de conviver com esse sentimento de injustiça.
Diante da realidade sociopolítica brasileira, pode-se dizer que Marcelo Rubens Paiva nunca esteve tão atual.

Com uma narrativa bastante envolvente, Ainda estou aqui é muito mais do que um mero livro literário escrito com o objetivo único de entreter o leitor, pois é extremamente rico também do ponto de vista informativo. Para quem se interessa por História, então, nem se fala. Não deixe de conferir esta obra prima da Literatura Brasileira. 
Você vê um quadro hoje. Vê o quadro de novo daqui a dez anos, o revê daqui a vinte, trinta, quarenta... É o mesmo quadro, com a mesma moldura, na mesma parede do mesmo museu, com a mesma luz, é você, mas cada vez será visto de outra forma. Cada vez ele nos conta uma história. O quadro não mudou. Já nós...

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Ana Liberato