quarta-feira, 16 de abril de 2014

Resenha: “As Sombras de Longbourn” (Jo Baker)

Tradução de Donaldson M. Garschagen

Por Kleris: É uma verdade quase universalmente reconhecida que, uma história antiga como “Orgulho e Preconceito”, em domínio público, permanecerá sendo lida, relida e remexida ao longo dos anos.

Não, não é assim que se inicia a narrativa de Jo, mas posso afirmar que, tal como a Jane Austen, ela abre a história colocando os pontos direto nos Is, nos revelando sobre qual realidade tratará: a vida das presenças espectrais que servem à família Bennet. Jo lhes deu nome, personalidade e história. 

Tomo aqui que vocês já conhecem o enredo em “Orgulho e Preconceito” (OeP). Para que certos acontecimentos tenham maior valor, a história exige uma carga de referências sobre o original; porém, em nada impede o entendimento geral. Na maior parte essas referências funcionam como um guia.

Bom, de volta à residência da família Bennet, dessa vez passeamos por cômodos que Jane Austen pouco se deteve. É na cozinha, no sótão, nos estábulos e no terreno da família que vemos Sarah e Polly, duas órfãs, trabalhando duramente ao lado do mordomo sr. Hill, e sua esposa sra. Hill, a cozinheira/governanta. 

A partir de um narrador na terceira pessoa, semelhante à Austen, conhecemos os cansativos serviços diários e as perspectivas de vida desse pequeno grupo, mais precisamente as de Sarah, jovem criada. Ela é uma moça que guarda opiniões, que não se contenta com o emprego, sofre de desgaste e tem sonhos de uma vida melhor. Duas novas mãos serviçais eram do que a casa precisava.

A chegada de James Smith, o novo lacaio, em nada muito substancial muda a rotina. Ele era uma presença, claro, diminuía o trabalho duro das criadas, veio muito bem a calhar, mas aos olhos desconfiados de Sarah, ele não passava disso. Os outros serviçais, por outro lado, eram bem agradecidos e acomodados em seus postos. Polly é uma menina doce e inocente, sr. Hill é um velho bondoso e trabalhador, e sra. Hill é a “mãezona” que comanda as coisas.

Logo a casa começa se movimentar, pois Bingley é o novo vizinho. Acho que é inevitável por essas horas ter o filme de 1995 ou 2005 (para quem assistiu) passando sob nossas vistas. É enquanto rola o início do romance da srta. Jane com Bingley que Sarah conhece o lacaio Ptolemy (que prefere ser chamado de Tol), um homem vivido e com um status melhor por trabalhar para uma família importante. Isso dá alguma esperança de mudança real de vida a Sarah. Só que uma mudança dessas já havia acontecido sem ela notar.
Sarah não podia imaginar que, ao secar as xícaras que ela lavara, ele pretendia chamar a atenção dela de alguma maneira.
As unhas dele, ela notou, pareciam luas pálidas – e chamou-lhe a atenção o movimento de seus músculos no antebraço enquanto ele passava o pano no interior das xícaras –, mas ele permanecia tão silencioso como uma pedra. Depois ela se lembrou [...] de Tol [...] e de como ele a notava, de como ele lhe dirigia todas aquelas atenções [...].
James trabalhava com deliberada lentidão, enxugando cada xícara e copo até rangerem, mantendo-se perto dela, apreciando sua expressão de enfado, seu silêncio obstinado. Aquela pertinácia, aquela carranca o encantavam de uma forma que ele não entendia claramente. [...].
Ela era mais dura do que ele imaginava. Não queria nada dele. Ela o afastava de si como uma mosca.
Ele se deliciava com isso. 

Conforme a história original foi progredindo, que os dias se faziam de esforços, reconheci um orgulho e preconceito que não poderia imaginar. É incrível como as coisas acontecem debaixo do nosso nariz. Nesse sentido, Jo seguiu a linha do romantismo e realismo de Austen, marcando a narrativa não com frases de efeito, mas cenas, muitas cenas detalhadas e longas (como o trecho anterior), para mostrar o ponto a ponto de como as coisas se davam, como as personagens se comportavam e o que realmente tinham em seus pensamentos. Isso dá uma graça maior às conveniências e nos faz colecionar um monte delas.
“O pacote. O que tem dentro dele?”
“Rosetas de sapatos”, ela respondeu.
“Rosetas de sapatos?”
“Rosetas de sapatos. Rosetas para sapatos.”
“Não entendi.”
Ela se impacientou. “Os sapatos de baile têm rosetas, que são presas neles.”
“Para que se faz isso?”
“Para que fiquem bonitos.”
Ele ergueu os olhos para o céu.
“O que foi?”
“Nada. É que, se a encarregarem de novo para uma incumbência tola como essa, debaixo de uma chuva tola como essa”, ele disse, “me procure, me ache, que eu irei no seu lugar.”
Ela pôs as mãos aos quadris, os olhos chispando.  “E por que você deve determinar o que eu posso e não posso fazer?”
Ele ergueu as palmas das mãos. “Eu não quis...”
“E se eu quiser ir? E se para mim for um prazer ir? E se eu não quiser que você meta o bedelho onde não é chamado?” 

O livro conta com três partes e um finis. Até a segunda parte as coisas se movem em função do mundo de “Orgulho e Preconceito”; é na terceira que vemos a real imaginação de Baker. A maneira como ela entrelaçou isso à trama de Austen me impressionou bastante, vide as entradas de capítulo, com trechos reais da obra (semelhante às epígrafes em Jane Austen: A Vampira, de Michael T. Ford). 

Houve uns momentos em que a narrativa se arrastou, mas gosto de pensar que era por ansiedade de chegar em alguns “finalmentes” (rs). Jo foi malandra de me deixar com o coração na mão diversas vezes, me emocionou, me fez rir, torcer shippar, e me chocou a ponto de me questionar seriamente sobre alguns personagens e comportamentos. Para o que Austen nos deu com uma visão romântica, Baker nos traz uma visão realista e vice-versa.

De todas as adaptações que já vi sobre OeP, esta certamente me chacoalhou! Já vi diversos filmes, séries e livros e nenhum até então consigo equiparar. Jo basicamente estendeu o quadro de vivência de Longbourn, região da casa “modesta” dos Bennet. Digo isso entre aspas por todos sabermos que a família não era nada abastada, mas viviam confortavelmente, o que nesse livro, sob a vista dos criados, a gente entende de outro jeito.
Sarah fez apenas um leve gesto de assentimento com a cabeça, cerrou os lábios e voltou a atenção para a mesa, oferecendo o prato de presunto frio: tudo seria esclarecido no devido tempo, não lhe cabia indagar. Nunca lhe cabia falar, a não ser quando lhe falavam primeiro. Era melhor ser surda como uma porta para tais conversas e parecer incapaz de formar uma opinião sobre elas.
Acho que a capa ilustra bem isso (o trecho). Apesar de o livro abarcar várias histórias, é em Sarah em que se centra. Gostei bastante do título também: o original é Longbourn, e a edição daqui acrescentou “as sombras”, o que concorda em dar mais vida a esses personagens. Só não concordo talvez com uma coisa (rs): na contracapa, há uma informação que diz que “Orgulho e Preconceito é só metade da história”. Arrisco afirmar que não é NEM metade e que foram uns bons 200 anos de espera que valeram a pena. Assim como guardei Lizzie e Darcy no coração, guardarei Sarah e James. E Polly, sr. Hill e sra. Hill!

Recomendo àqueles que já leram (ou conhecem a história) OeP alguma vez, independente de terem gostado. Ou mesmo se gostam da série Downtown Abbey! Vocês PRECISAM ver o que Jane não pôde, àquela época, nos contar, e não falo só pelos criados, mas também um imaginário sobre as Bennet casadas. Sugiro, no entanto, que mantenham um aplicativo de dicionário perto (rs). No começo tem umas palavrinhas que podem parar sua leitura, mas com o tempo vocês levam na boa.

Acho que nem preciso dizer que AMEI, né?

E já quero saber de outros trabalhos da escritora.

Espero que também amem. Até a próxima o/



15 comentários

  1. Eu nunca li nada da Jane Austin e também são assisti ao filme de Orgulho de Preconceito, então creio que essa não seja uma experiência indicada pra mim =/

    Beeijos, Dreeh.
    Blog Mais que Livros

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    1. Não aiiiiiiiinda, talvez. Indico se familiarizar primeiro com a trama, senão partir pro livro OeP mesmo. Tem mta adaptação boa e que explora vários personagens. Já nesse livro, a coisa é mais intensa. Qnd vc se sentir preparada pra ser arrebatada, se joga em As Sombras de Longbourn que aí... ah, é só amor <3

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  2. Kléris, terminei de ler o livro na semana passada e também fui arrebatado. Não só pelo fato da Jo Baker enxergar coisas incríveis na história da Jane Austen, mas por ter muita autonomia na escrita, muita personalidade. Ela é tão capaz de se colocar no lugar do outro a ponto de nos passar a sensação dos cavalos ao sentir a mão do cocheiro tremendo de frio!
    Mas tem uma sequência de duas cenas no livro que me deixaram apaixonado: Sarah conversando com o Mr Collins sobre o seu dever na vida (você enxerga o mesmo Mr Collins da Austen!) e as percepções da Sarah na escuridão do jardim de Netherfield durante o baile.
    Sim, os filmes fazem contribuições (maravilhosas) à nossa imaginação. Mesmo que eu tenha relido Orgulho ano passado. Inclusive ano passado escrevi esse textim pro Jane Austen BR>

    http://www.janeausten.com.br/2013/06/nao-existem-pobres-na-inglaterra-de-austen/

    Fiquei feliz pela sua resenha. Arrasou!

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    1. Arrebatar é a palavra! Fazia um bom tempo que não me derrubavam assim (sendo que OeP foi uma dessas leituras, li faz uns 2, 3 anos - e ainda não consigo me distanciar).
      A desenvoltura da Jo foi impressionante. Ao finalizar, enqnt queria acalmar os feels, só fiquei pensando no hard work dela para se envolver de fato com a história e, cara, ela fez tanta pesquisa! Fiquei tão irrequieta de emoção que fui bater lá no FB da autora e contar como eu tinha amado hahaha, não resisti.
      Senti mesmo que ela esticou o quadro que era OeP. Jane menciona James apenas uma vez e nem o nomeou. E a Jo fez mto mais que isso. Não acredito que cheguei a odiar a Lizzie em dados momentos (mas o Wickham só reforçou mais meu ódio habitual hahaha) e tbm achei mto boa a sacada com o Mr. Bennet.
      Como eu falei, o que Austen tratou com romantismo, Jo tratou com realismo e vice-versa. Senti mto isso na escrita e na trama, mas, por ser fã do realismo, posso ser suspeita pra falar XD E mais suspeita ainda pela coleção de cenas - tantas que tô precisando de mais etiquetas adesivadas pq não deu pra marcar todas que eu queria *------* Muitas delas mostram a força de Sarah, que mesmo em suas condições de empregada, ela é uma figura pensante e muito consciente das coisas e de sua época. Realmente, ainda não consegui pensar em qualquer adaptação, releitura ou coisa do tipo que tenha tratado tão bem a história.
      Talvez só perdoe o Wickham em Lost In Austen mesmo e olhe lá.
      Obrigada por compartilhar sua opinião :)

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  3. Também amei este livro! Sua resenha é maravilhosa. :)

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    1. Thanks, Luciana. É difícil compilar tanto pra um livro tão rico! Dá vontade de só sentar e começar a falar e falar hahaha

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  4. Sua resenha me deixou louca pra ir direto na livraria comprar!!! Eu preciso muito dele e estou com uns 30 livros não lidos aqui em casa, então, no momento não vai rolar #Sofrimento! :(

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    1. Sei beeeeeem como é, tenho umas duas pilhas de não lidos, aí só fui ver a capa e a referência a OeP, pronto, as pilhas... que pilhas?! Mas qnd rolar, prepare-se para os feels, eles são muuuuuitos *------*

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  5. A Adriana me mostrou pelo twitter e corri para ler sua resenha!!! Só tenho uma palavra a dizer: "Obrigada por compartilha!" Preciso ler!!! Sou uma Austeriana convicta, historiadora de profissão e louca por qualquer coisa que envolva "Orgulho e Preconceito" o melhor de todos os romances já escritos nos últimos 200 anos!!!

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    1. Ah, agora que vi que estou logada na Estante, o entusiasmo foi tanto que esqueci...

      Ass.: Pandora.

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    2. Adoooooro! Ainda tem mto entusiasmo cá cmg pra vc ver.
      E se já ama OeP, é só um pulo pra As Sombras!
      Qnd eu começava a me desgarrar de OeP, Jo vem e me derruba! Agora que não arredo o pé de Longbourn.

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  6. Olá! Tudo bem? Eu conheci seu blog agora, porque eu fui publicar uma resenha desse livro no Skoob e vi que você tinha publicado também. Eu fiquei tão feliz por ler sua resenha e sentir que você gostou tanto quanto eu desse livro! Eu confesso que estava esperando um spin-off meio ruim da história de Orgulho e Preconceito, como de costume, mas tive uma surpresa tão boa ao ler esse livro. Me deu até vontade de reler o clássico!
    Se interessar, minha resenha está aqui neste link: http://www.agua-marinha.net/2014/04/resenha-as-sombras-de-longbourn-de-jo.html
    A autora deve estar feliz por ter atingido o público mais difícil, os fãs do livro.

    Beijos,
    Nereida
    agua-marinha.net

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  7. Este comentário foi removido pelo autor.

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Ana Liberato