segunda-feira, 29 de outubro de 2012

[Conto] "A porta" (Sheila Schildt)


Post especial de contos escritos pela equipe Dear Book durante a Semana de Halloween

"A porta" (Sheila Schildt)

Estava frio, mas não era noite. A neve caia em flocos, cobrindo de branco a terra vermelha e dura por onde seus pés tinham caminhado tantas e tantas vezes nos últimos anos. Mesmo assim ele sentia medo. A culpa era da porta. A maldita porta do galpão. Ele tinha certeza de tê-la trancado. Ou será que a tinha deixado aberta? Ele realmente não sabia. Aliás, com a passagem dos anos, parece que havia sempre mais uma coisa da qual não conseguia se lembrar de forma clara.

A voz da mãe, chamando-o para o café, à tarde. O rosto do pai. O gosto do primeiro beijo, roubado furtivamente à sombra de uma árvore. A areia escorrendo pelos seus dedos. A visão do oceano – ah, o oceano! Quanto tempo fazia? Infelizmente, parecia que essa era mais uma das coisas de que ele já não conseguia se lembrar. Qual seria a explicação para que cores, sons imagens, se esvaíssem desta forma? Será que, assim como determinados produtos, as lembranças teriam uma espécie de prazo de validade? Ele não saberia dizer.

A maldita porta, batendo mais uma vez, o faz deixar de lado os devaneios e voltar ao momento presente. Teria ou não fechado a porta? Na verdade, não importava bem a resposta. Sabia que teria de vestir as botas e o casaco e ir fechá-la. Afinal, já haviam entrado animais em busca de abrigo no velho galpão e feito uma senhora bagunça que, é claro, ele teve de limpar depois. Mas a dúvida o corroía Sempre que algo assim acontecia, a dúvida, essa companheira irascível dos últimos muitos anos se insinuava e, junto com ela, o pavor da resposta.

Mas não, não poderia ser. Afinal, já haviam se passado tantos anos ... nas primeiras semanas, meses, ainda tinha se mantido alerta ao menor barulho, alteração na paisagem, farfalhar das árvores. Qualquer ruído era capaz de despertá-lo a qualquer hora do dia ou da noite, do seu cochilo ao sono profundo. Aliás, nos primeiros tempos ele mal dormia. Como conseguir fechar os olhos sabendo o que rondava lá fora? Seria muita estupidez, e outras já haviam sofrido por sua falta de zelo e excesso de confiança – ou de bondade, que ele via como pura estupidez - mas não ele.

Logo que a infecção começou, ele achou que nada tinha a ver com isso. O governo que desse um jeito. Contratasse mais policiais e trancafiasse essa gente em algum hospital. E, se a polícia não desse conta, sempre se poderia chamar o exército. Mas o que se acabou descobrindo é que talvez o próprio exército tenha sido o responsável por tudo isso, afinal de contas. E que ele não estava tão seguro quanto imaginava. Afinal, qualquer contato com um infectado: um abraço, um aperto de mão, até mesmo respirar muito tempo em uma sala fechado com alguém portador do vírus, já seria o suficiente para se ver condenado para o resto da vida – um resto lento e miserável diga-se de passagem.

Ele fugira. É claro que fugira. O que poderia ter feito pela mãe? A última vez em que lhe entregou, usando um cabo de vassoura, um prato de comida no lugar da casa onde estava confinada, pode ver parte de sua mão e braços – ou o que restava deles. Isso o apavorou mais do que tudo. Só conseguiu pensar em juntar seus poucos pertences e sumir dali. Iria para as montanhas – sim! Essa era uma idéia magnífica. É claro, como não havia pensado nisso antes? A neve, a distância da cabana da família de qualquer outro lugar habitado, isso o poria seguro do caos que se instaurara até que alguém tomasse alguma providência e ele pudesse voltar.

Agora, pensando bem, quão grande fora seu engano. Os saques já haviam começado, então foi fácil conseguir as coisas que precisaria para se isolar por um bom tempo. Mas as notícias vindas pelo rádio que levara não eram animadoras. Até o dia em que não houve mais notícia nenhuma. Só estática. O que fazer? De suprimentos não precisava. A floresta lhe dava lenha, peixes, caça, tudo de que precisava. Não, não era verdade, uma coisa ele não tinha. Paz. Ele nunca teria paz. E a culpa era da batida incessante daquela maldita porta. Teria ou não esquecido de fechá-la? Quantas balas ainda teria na arma, caso precisasse usá-la em algo lá dentro? E será que ele conseguiria? Nunca havia matado um ser humano antes. Apenas fugira.

Por fim o vírus não havia sido como nenhum daqueles descritos nos livros medíocres de batalhas pós-apocalípticas que vira nas bancas – quando estas ainda existiam. Ninguém virou zumbi e saiu devorando semelhantes, ou ficou agressivo, fora de si, ou nada do tipo. As pessoas só ficavam muito doentes e então ... bem elas se desfaziam. Como se apodrecessem, lentamente, de dentro para fora, e não era algo agradável de ver. Um dos primeiros sintomas era a febre, seguida de cansaço e leves tremores. Depois, vinha a sensibilidade a luz, a fadiga extrema, a perda dos dentes e cabelo. Era como a lepra, ou morte por radiação, mas muito pior e muito mais rápido e letal.

Assim, foi com o máximo de cautela que ele resolveu ir verificar a porta do galpão – Sabe Deus o que encontraria lá dentro! Na melhor das hipóteses, mais caça para o inverno. Na pior ... bom, ele preferia não pensar nisso. Na neve que caia, caminhou até o galpão, sentindo o vento lhe golpear o rosto sem piedade. Abriu alguns centímetros da porta, sempre com o cano da arma à frente. Mas não havia nada lá. Sim, ele era apenas um homem ficando velho e caduco, com uma cabeleira já branca e mãos trêmulas, e esquecendo-se de coisas simples como fechar uma porta. Ainda perpassou o olhar pelo galpão, repleto de ferramentas, lenha e quinquilharias, riu de sí mesmo e estendeu a mão para puxar a porta atrás de si e trancá-la.

Mas então veio a mão. E a mão era muito, muito branca, e muito, muito pequena. E só então ouviu os soluços. E o choro - ah, como era dorido! - vertia de pequenos olhos, tão negros quanto o cabelo desgrenhado do pequeno ser que o fitava. Agora, pensando bem, passado um tempo do acontecimento, ele não consegue pensar no que passou por sua cabeça. Sua reação foi rápida e instantânea. Atirou na garota, bem no meio da testa. Depois correu. A casa, precisava voltar para dentro da casa. Lá sim estaria seguro, sentado em sua cadeira e espiando a neve que caia lá fora. Isso já fazia dias, quase duas semanas talvez.

Desde então, não entrava mais no galpão. A lenha acabou, ele tem começado a ter tremores e se sentir entorpecido, mas certamente isso deveria ser do frio, a casa ficara gelada com seu racionamento de lenha. E a porta, a maldita porta! Bom, essa terá que continuar a bater ...

16 comentários

  1. Sempre que assisto ou leio algo como o que você descreveu no conto acima, fico imaginando como o ser humano é pequeno, egoísta e insensível, quando alguma coisa torna-se maior que sua compreensão, mais forte que sua vontade e tão letal como o vírus. Não precisamos de nada tão dramático como o descrito no conto, basta ver como as pessoas agem quando alguém fala em gripe H1N1. Gostei do post. Muito bom.

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  2. Adorei seu conto, e é bem como a Maristela disse mesmo.
    Esse conto seria um ótimo capítulo de quem sabe um best seller.

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    1. Nossa Alice, mto obrigada! fico realmente lisonjeada, não consigo me imaginar autora de um best seller, mas pode contar com outros contos por aqui, abraços

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  3. Você tem tanto talento, já pensou em escrever um livro? Como no comentário da Alice Rodriguêz, seria um livro digno de best seller! Adorei o texto amore, é perfeito *-*

    Beijos!

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  4. Adorei o jeito como foi colocado um suspense nessa história..mergulhei junto e não queria que acabasse! =)

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  5. Eu gosto muito desses contos de terror.. e eu me arriscaria a dizer que você, além de escrevê-los muito bem, é fã de Edgar Allan Poe. Estou errado?

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    1. na verdade, Poe e Stephen King são meus grandes ídolos, adoro romances de suspense e terror! abraços

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  6. Nossa, amei, meus parabéns... comecei a ler pensando: olha só, ele tem TOC, rsrsrsr Até porque o isolamento nos deixa expostos à loucura, não é. Mas o conto foi muito além do que eu esperava e concordo com o que as gurias disseram, vc poderia escrever um livro. Eu compraria!

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  7. muito bom seu conto, se escrevesse um livro eu com certeza leria!

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  8. Adorei o conto :)) Mesmo que já tenha passado do hallowen.

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  9. Olha, essa história daria um livro, hein! Não cheguei a ficar com medo, mas admito que fiquei um pouco ansiosa HUEHEUHEUEH

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  10. WOW! Que história! Gostei muito mesmo, deu até medo ;)

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  11. Fiquei surpresa. Sem palavras, comovida e assustada.
    Parabéns pela escrita!

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  12. esse conto foi escrito para o Halloowen de 2012 ... e grande foi minha surpresa em encontrar comentários em agosto de 2013! Recentemente publiquei este conto pela coletânea "Sonhos e Pesadelos" da APED e estou com alguns novos, mandei para algumas editoras mas até agora não obtive resposta... então por enquanto um livro esta fora de cogitação. Mas agradeço imensamente os comentários, são eles que me motivam a continuar escrevendo, abraços

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  13. Oi Pessoas! Passo apenas para avisar que este conto fará parte de uma coletânea com outros 10 do meu primeiro livro \0/!
    Ele se chamará "Sangue na lua", essa é a página dele no face https://www.facebook.com/sanguenalua

    BJUS

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Ana Liberato